sábado, 19 de fevereiro de 2011

A Última Batalha de Noé.

Olá amigos do Moral Hazard! O texto que lerão a seguir é inspirado num cenário de RPG que eu comecei a desenvolver. Quem quiser ler mais sobre o cenário, pode ver as minhas idéias e a discussão delas no seguinte tópico: http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=34919&tid=5574626503762823405&na=1&nst=1
Sintam-se convidados a comentarem por lá do que acharam do cenário, mas comentem aqui no Blog o que acharam do conto.

A Última Batalha de Noé.


A besta dominava o horizonte, Krozoth'ylhen, A Fera Escarlate, Sacerdote da Sordidez. Aproximando-se cada vez mais do Forte do Cosmos, era a representação da Demência materializada no Limbo. Trinta e sete bocas gotejavam incessantemente sua bile carmesim, os membros retorcidos em ângulos absurdos deformavam a paisagem à medida que avançavam, como se estivessem forçando as dimensões do plano a se adequarem a sua geometria alienígena e o vapor avermelhado que emanava de seus poros dissolvia os fios da própria Realidade.

Do alto da Torre de Fé, Noé contemplava seu adversário, ao mesmo tempo em que orava para seu Deus. Abandonado por aqueles que amavam-no, esquecido pelas almas que um dia louvavam seu nome, sua fé era uma das poucas coisas que havia permanecido de sua personalidade após tantos séculos. Todo o resto havia se perdido, juntamente com seus seguidores, como resultado dos numerosos confrontos que travou contra entidades cósmicas, como esta que em pouco tempo devorará seu Forte. Cada batalha fraturou um pouco mais sua Razão, à medida em que as deformações de sua psiquê passaram a ser usadas como arma e ele forçava a realidade a se adequar a seus delírios para que ela não sucumbisse aos delírios alienígenas dos Horrores. Era um preço pesado a ser pago, mas antes era um preço que ele podia suportar, contando com o amor e afeto de centenas de pessoas para curar sua própria alma. Agora estas almas se foram e Noé não é mais sequer capaz de entender o porquê. Em sua mente tudo que há é sua Fé e a necessidade de vencer mais este adversário.

Este único pensamento ressoa por todo o seu ser, moldando sua alma como um gigantesco martelo, pronto para esmagar os inimigos da Criação. Noé não era mais um homem, era uma arma. Veloz ele avançou pelos céus. Uma garra da criatura perfurou-lhe, mas isto não era nada para ele. Há muito tempo ele já se esquecera de sensações como a dor, seu corpo agora era feito de pedra. O martelo de Deus continuou sua trajetória e golpeou um dos muitos olhos da criatura. O golpe reverberou em seu ser, que sentiu toda a extensão da magnífica vontade daquele homem negando sua presença no Limbo. O contragolpe foi selvagem. Com um movimento de sua cauda, a fera destroçou a parte leste do Forte do Cosmos, esfacelando com ele uma parte do coração de seu oponente. O Sacerdote da Sordidez atacava não Noé, mas aquilo que tinha significado para ele. Até o raiar da alvorada, Krozoth'ylhen estava determinado a devorar a alma daquele homem, sonho por sonho, amor por amor.

A Cólera Divina queimou por toda a alma de Noé e através dela incendiou os céus do Limbo e cem mil anjos desceram do firmamento portando espadas reluzentes, todos eles criados pelo delírio de uma única alma. As navalhas incandescentes despedaçavam o corpo do monstro com a mesma intensidade que Noé despedaçava sua Razão. Ele anunciou que era o tempo do Juízo Final e o próprio Tempo respondeu aos seus comandos, detendo-se e congelando no espaço um golpe da Fera. Ele clamou pela força do Arcanjo Miguel e golpeou a besta com uma força tão estupenda que a ergueu do solo.

Mas o golpe mais forte de todos foi desferido pela Fera Escarlate. O Sacerdote da Sordidez havia sondado seu oponente em segredo e com isto soube atacar onde doeria mais. Seus tentáculos foram lançados pelo Limbo, cruzando uma distância equivalente a continentes e penetrando nos locais mais secretos do plano. De lá eles retornaram com algo que Noé não esperava jamais rever, após nunca ter ele mesmo encontrado-a: sua Arca. Construída por suas próprias mãos, a representação mais concreta de seu pacto com seu Criador, o símbolo de tudo aquilo que ainda lhe dava forças para lutar. Krozoth'ylhen permitiu-lhe ter um breve vislumbre dela uma vez mais antes de devorá-la por inteiro, para que a perda fosse sentida com mais intensidade e Noé soubesse exatamente o que ele havia acabado de destruir.

E o hebreu o sentiu. Ele foi incapaz de esboçar qualquer reação mesmo quando Krozoth'ylhen devorava o último de seus anjos. Ele estava inerte quando a Fera Escarlate estilhaçou o que restara do Forte do Cosmos. E quando ela finalmente avançou para devorá-lo, seu único pensamento foi “que me seja permitido ser levado pelo Dilúvio desta vez”.

Quando os céus clarearam-se após os quarenta dias da mais furiosa tormenta, não havia mais sinais nem da fera, nem do homem, apenas uma pomba branca pousada sobre as ruínas que restaram do antigo Forte do Cosmos.