sábado, 30 de outubro de 2010

Andando para a Vida

Outro devaneio de Bailarina Verbal , em Moral Hazard!
Fundo musical sugerido


Andando para a Vida

_ Andando para a vida, -não é pra ser bonito, é apenas para ser verdadeiro, ela avisou.
_ Continue. - disse o senhor.
Ela então atendeu o pedido, que refletia mais curiosidades que quaisquer preocupações com suas impressões, e prosseguiu:
_Andando para a vida, ele tirou o capacete verde musgo e foi aí que eu pude ver o crânio exposto. Ele realmente queria viver, mas a foice parecia já estar mirada. O rosto sujo de lama e pólvora eram lavados pelas lágrimas daquele homem. Tão grande e tão pequeno, tão forte, e tão frágil, tão dicotômico, tão ambíguo, parecia inatingível e no entanto, lá estava ele, estirado sobre a relva, misturado nos tons de verde e marrom.
Eu estava a três passos do homem, e não soube definir seu contorno. Era uma imagem tão confusa, tão indissecável... E não era apenas por causa da roupa camuflada, ou do rosto sujo, ... É que, quanto mais eu olhava, mais a relva me parecia humana; e ele, cada vez mais próximo da realidade material daquele vegetal.
_ Está bem, eu entendo que deva ter sido difícil para a senhora, mas se puder abreviar a história... Eu ainda tenho outros morimbundos para identificar... Não era pra ser bonito, lembra-se?
_Ora, o senhor acaso está achando isto bonito? O homem uivava, -a mulher pôs as mãos nos ouvidos, perturbada- uivava como um lobo ferido.
_ A senhora então viu o general tirar o capacete, já alvejado, cair e agonizar, certo? A senhora se aproximou, ele lhe disse algo antes de morrer?
_O que o senhor presume? - o vestido estava completamente ensaguentado- Aquele homem tinha família?
_Senhora, estas informações não são...
_O senhor, o senhor tem família? - interrompeu a mulher, e ele então percebendo que não obteria respostas, se também não as desse, disse:
_Tenho sim. - e antes que ela o arguisse, completou- Três crianças.
_Graças a Deus. - a mulher pôs as mãos juntas no peito.- E já perdeu alguém?
_Aonde a senhora pretende chegar? - disse ele impaciente- ... Olha, eu não devia contar as especulações para a senhora, porque são de cunho confidencial. Mas há a suspeita de que esta batalha foi artimanha de um grupo interno, justamente para armar esta emboscada para o nosso general. A senhora está entendendo a gravidade da situação? A senhora não viu nada que pudesse colaborar? Ele mesmo, não disse nada antes de morrer?
_Disse, sim senhor.
_Por Deus, e porque a senhora não chega logo nesta parte?! - o tom esganiçado e a fronte rubra.
_Não acredito que o que ele tenha dito ajude em alguma investigação... - ela mantinha o olhar vago...
_Isto é meu trabalho. Cabe a senhora apenas informar... Ele era o general da tropa, entendeu? A senhora entendeu? - o homem ia ficando vermelho até às escleras.

_Meu senhor, ele era um homem. O senhor não entendeu? Um homem cuja condição naquele momento não era sequer humana, aliás! Com o crânio aberto e o cérebro exposto, as mãos seguras num capacete, o corpo emaranhado em plantas e lama pouco importa qual é a patente dele! O homem uivava como qualquer outro uivaria, os olhos com o medo que qualquer homem teria.
Eu me aproximei sem saber ao certo o que fazer. Pedindo a Deus que tivesse santa misericórdia daquela alma, ...Eu realmente não tinha o que fazer, a não ser espantar os insetos que já sobrevoavam-no. E o senhor sabe o que eu vi nos olhos daquele homem?

_ Não, ... Até tem uma facção que, ao matar, retira a pálpebra direita... Mas a perícia já averiguou, e não existe nenhuma marca que...

_Eu vi o medo daquele homem, senhor! - ela interrompeu indignada.
_Ah sim, a senhora já tinha dito isso... - disse o homem entediado.
_E eu vi além do medo, a vergonha.
_Minha senhora, morrer fardado em combate não é motivo para vergonha. - riu-se o homem- Ainda mais para um general. Isto é sinônimo de honra! A questão que estamos vendo, é justamente se foi um combate digno, ou se foi uma emboscada...
_Senhor, qual é a honra que pode haver em morrer com medo? - O homem então levou a mão esquerda ao queixo, e coçou levemente. A mulher então prosseguiu:
_Aquele homem talvez preferisse ter morrido sozinho. Mas ele viu que eu vi o medo em seus olhos. E a vergonha daquele homem, de perceber que morreria inevitavelmente com os olhos transbordando de medo foi o impulso, para que ele me dissesse suas últimas palavras.
_Ahh finalmente! E então, o que foi que ele disse?
_Eu estava orando ajoelhada, com a cabeça aberta do homem sobre as minhas pernas. Quando ele então constrangido tomou fôlego e pediu que eu fechasse os olhos dele, para que ninguém mais além de mim, visse o medo que ele sentiu ao morrer.
O senhor não me respondeu... o senhor já perdeu alguém? -O homem cabisbaixo parecia enfim ouvir o que aquela mulher dizia.
_Precisei fechar os olhos da minha esposa. Ela faleceu ao dar à luz ao terceiro. - a cabeça baixa, só permitia que a mulher visse a calvice que o homem tinha no topo da cabeça.
_ Tenho certeza, que o medo de sua esposa, e o medo do general não diferiam.
Nesse momento, duas gotas pingaram na terra, próximo às botas do homem, que permanecia de cabeça baixa.
A mulher então virou-se e começou a caminhar. O homem ergueu o olhar, e seguiu outro rumo.
Ambos estavam inevitavelmente andando para a morte...
Andando para a vida,... -não é pra ser bonito, é apenas para ser verdadeiro, ela avisou.


***


Bailarina Verbal

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