sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Matacão

Estimados leitores deste sítio por hora estagnado, a postagem de hoje pode ser interpretada inverossímel se comparada à proposta inicial do blog ...

Mas fazendo um esforço, todo e qualquer assunto poderia ser abordado sob a justificativa de que tudo é, de alguma forma, pertinente ao comportamento humano, não porque sejamos os seres mais importantes, mas porque esta análise estaria sendo feita a partir de nós, e portanto, existe a nossa própria referência.

Dito isto, dou-me o direito de começar o conto:





Havia uma menina muito desengonçada, ela era grande e apesar de magra tinha uma barriga protuberante, não era bonita, mas melhorara de sua aparência da infância, e isso ninguém contestava. Uns diziam que era ingênua, outros afirmavam que Laetitia era burra, e ainda havia os que lhe atribuiam a teimosia como mãe, mas o fato é que sempre cometera os mesmos erros. Na verdade, o mesmo erro, mas ele era tão grande e tão importante que nos permite usar plural.
Laetitia morava numa aldeiazinha, bem miúda, e que ficava numa espécie de vale, na ponta de um dos morros havia uma pedra enorme, e tinha um formato curioso...
Um dia, antes de dormir, perguntara a sua avó, sobre aquela pedra... A avó, em sua expressão, mostrava uma certa satisfação com a pergunta... E então começou tradicionalmente, como se fosse um conto de fadas, a contar a história daquela pedra de formato curioso.

***

Era uma vez um rochedo, ele era bem grande e alto, e costumava proteger uma aldeiazinha dos ventos tempestuosos... Mas erodira-se com o tempo, e estava minguando. Certa vez chegou um vento abusado, desses de outubro, que lhe soprava a fronte e ameaçava-lhe com palavras debochadas:

_Ora, ora, ora, se não temos o Rochedo Protetor... você me parece fraco, ehm. Se continuar assim, vai acabar tornando-se um matacão! - E rodopiou rindo, se afastando em assobios sarcásticos.

O Rochedo não respondeu. Ele parecia evitar uma conversa, fosse para explicar os problemas fosse para torná-los maiores, tudo o que ele menos queria era falar com alguém, qualquer pessoa que se aproximasse era respondida secamente, ou apenas ignorava como acabara de fazer com o vento...
Mas ficara pensando no que aquela indesejável presença lhe dissera... O maior pavor de toda sua vida sempre fora tornar-se um matacão... Isso significava deixar de ser Protetor e passar a ser uma ameaça pra cidadezinha que ele tanto gostava... Não, um matacão não!
Seria como ir contra seus princípios, fazer tudo o que sempre recriminou,...

Brigara com um conhecido seu, que antes era um rochedo como ele, mas tornara-se um matacão, e rolara sobre a aldeia vizinha trazendo destruição para os que outrora se submeteram à sua proteção. Os que sobreviveram desta aldeia migraram para a aldeia que ele protegia agora, e se ele se tornasse um matacão também traria desespero, e decepção para aqueles que lhe deram votos de confiança.
Havia, claro, aqueles que se sentiam inseguros, a cada ventania, quando viam partes do Rochedo esfarelar... E não era pra menos, porque o próprio Rochedo se sentia assim também. Ele mesmo não sabia como resistir aos ventos que lhe atribulavam,... Tentava ignorar-lhes, calar, concordar, pra ver se eles passavam ligeiro e não criavam mais problemas... Mas por mais que fossem embora logo, sempre acabavam levando uma lasquinha dele.

_ E daí? - disse um corvo ao pousar no Rochedo, enquanto comia um resto de algum animal. - É a lei da vida, você vai erodir e vai rolar como todos os rochedos que ja foram protetores, traem suas aldeias.
Ele permaneceu parado, e escutava.
_Você é uma pedra, fica aí parado não faz nada! não voa como eu, não caça como eu, nem vive como eles lá embaixo...
Os dois olharam para a aldeia, e lá estavam os pescadores, as rendeiras, os lenhadores, as crianças, os cachorros...
Ahh, ele nutria uma afeição por aqueles cachorros todos. Sentia inveja da maneira como eram afagados pelos donos, mas quem afagaria um Rochedo? Sentia inveja da fidelidade que eles ofereciam em troca de tão pouco... Mas quem poderia ser fiel ? Ele mesmo duvidava da sua fidelidade, porque não estava sob seu controle ser instrumento de destruição para aquela cidade, ou pensava ele nao estar...

O corvo já terminara a refeição, e já estava levantando voo quando disse suas últimas palavras direcionadas àquele Rochedo.

_Eu estou voando agora para o leste. -e tornou a pousar, porque o assunto parecia sério e confidencial- Corvos não costumam se confidenciar, mas... camarada, eu vivo uma vida de fuga. Eu fujo do inverno.

_Ao menos você tem a opção de fugir do que te faz mal... -respondeu-lhe o Rochedo rancoroso.

_Eu saio por aí e conheço muitas terras.. Conheci Rochedos tão insatisfeitos quanto você, que não saiam do lugar... E bem, eu posso parecer livre, mas tudo o que eu queria era estar fixo em um lugar, acompanhar uma aldeiazinha que fosse... Eu nunca fiquei mais de três meses em um mesmo lugar... Mas eu queria saber como é ser tão estável assim, como você... Vocês são engraçados! Tem tudo para serem seguros e estáveis e ficam preocupados em quando se tornarão matacões...Francamente, por que não esperam pra ver?

E depois disso voou, sem olhar pra trás.

Naquela noite ele dormiu pensando no que o corvo lhe dissera...

E Laetitia também...

***

Laetitia gostava de sentar-se aos pés do Rochedo, quando folgava de suas tarefas, e agora observava o formato dele, duas concavidades na parte superior, com um vão no meio... como uma miniatura da cidade um vale entre dois morros... E na base, a pedra ia se afinando, até cair em ponta.

_Um coração!!! -Ela disse. E afagou o rochedo, satisfeita...

E naquele momento, o Rochedo se sentiu como um dos cachorros da aldeia, que eram afagados com tanto afeto... E percebeu que o corvo tinha razão. O vento o lapidara, e agora ele não era um matacão, mas, ainda que de pedra, ele era um Coração.

***

E isso é só, nobilíssimos leitores...

Peço desculpas, pela simplicidade do conto... mas espero que tenha ao menos servido para entrete-los!

Até mais! o/

Bailarina Verbal.

6 comentários:

  1. sempre há uma mão para afagar a pedra, isso é fato. mas a pedra tem que reconhecer as boas intenções da mão, e arriscar, em vez de viver com o medo de virar um matacão... antes que seja tarde.

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  2. É uma questão de tempo para a pedra rolar. Os aldeões sabem disso e sempre falam pra menina, que prefere pagar pra ver a tragédia anunciada, ficando no caminho da pedra, e principalmente, sentindo-se viva ao ser esmagada por ela.

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  3. De fato temos de aprender a viver um dia de cada vez, sem se preoucupar com o verão ou inverno que podem nem chegar e dar valor a nossas raizes.

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  4. Rochedo bobinho, preocupado com o amanhã, se iludindo achando que pode controlar a vida...característica muito humana de fato. Eu faço minhas as palavras de um velho sábio que disse certa vez: "Ontem é história, amanhã é mistério, mas hoje é uma dádiva e por isso chamam de presente."

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  5. gostei deste final.. pq para laetita todas as inseguranças do rochedo foram resolvidas por seu afeto.. nao necessariamente tirando todas as suas incertezas.. nao da maneira q ele esperava!
    até porque virar um cachorro nao ia resolver nada! hauahuah

    tem certas inseguranças que so uma coisa pode suprir....

    envolve confiança!!
    chega de dicas..
    ahuahua

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  6. Bom conto. Mas parece um capítulo. Creio que há muitas analogias com o comportamento humano em seu texto. Gostei muito do que li, sobretudo da confissão do inseguro Corvo, que iniciou caçoando do Rochedo, porém reconheceu que sua vida também é restrita por condições alheias a ele. Siga com essa história. A acompanharei. Mas saiba que não é um conto, e se esforce e mantê-la com sequência, aprofundando as personagens. Verá que será muito interessante srta.

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